O que aqui me traz hoje, para além de uma integral
devoção à Maçonaria Universal, a que me orgulho de pertencer, é a
resposta ao convite do meu querido e ilustre Irmão Amando H.'., no
sentido de tecer, para o mundo profano, algumas das reflexões
pertinentes, na minha qualidade de Maçom. Num momento histórico em que
os valores do Universalismo se começam a esboçar, melhor ou pior, em
particular através da destruição das barreiras da informação, da
globalização do conhecimento e das atitudes, e, para nós, do emergente
espaço comunitário europeu, é urgente explicar aos outros “porque sou
Maçom”. Este é, como penso ser do conhecimento comum, o título de um
brilhante livro do meu Irmão Amando H.'., que eu não pude resistir a
retomar nesta comunicação, pela sua pertinência, independentemente do
seu conteúdo original.
Numa época em que a temática do
Universalismo deixou de ser apanágio quase exclusivo da comunidade
maçónica, em que os valores profundos da Liberdade, Igualdade e
Fraternidade, ou da Fé, Esperança e Caridade se desmaterializam e
desconstroem, em que a virtualidade dos valores reais se confunde com a
realidade dos valores virtuais, em que tudo o que é imaginável se
demonstrou realizável, mas em que persistem todos os erros e vícios e
desigualdades e preconceitos e intolerâncias que sempre definiram e
marcaram a história da humanidade e das suas sociedades, não é
redundante um Maçom questionar-se e procurar definir o seu próprio
contexto espacial e conceptual. De construtor de catedrais a construtor
de sonhos e fantasias vai um passo de gigante, vai um imaginário de
formiga. O convívio entre a sumptuosidade mítica das catedrais e a
miséria, a fome e a intolerância, acompanha ainda a contemporaneidade. A
injustiça, os preconceitos e os erros são tão actuais como a internet e
as sondas no espaço. Por cada lauto banquete numa qualquer cidade da
europa comunitária, há milhões de africanos que anseiam que lhes caia do
céu um saco de cereais despejado por um avião da cruz vermelha, ou de
outra qualquer organização de solidariedade. A cada humano solidário
continuam a corresponder milhões de umbigos solitários. A realidade que
se nos oferece neste fim de século não é, assim, muito diferente das
realidades que se nos ofereciam em tantos outros fins de século. O fim
de século não significa o fim nem o início de seja o que for. É apenas
um instrumento de medida como tantos outros, se quisermos, um
instrumento de medida da nossa inoperância, da nossa incapacidade.
Na minha qualidade de docente universitário, que venho exercendo,
paralelamente com outras, há mais de duas décadas, tenho assistido ao
nascimento e ao enterro de muitos heróis. Todos eles contribuíram para a
diferença, nenhum deles pôs termo ao sofrimento, à intemperança, à
injustiça. A Humanidade Sofredora de hoje mantém-se idêntica à
Humanidade Sofredora de todos os tempos. À cura para uma doença fatal
sucede sempre uma doença fatal sem cura. A cada passo dado no sentido do
conhecimento corresponde uma avalanche exponencial de dúvidas. Se
calhar é mesmo para ser assim, o que não é impeditivo do nosso
inconformismo.... É nesta esteira de preocupações que parto em demanda
dessa questão que me traz aqui hoje: porque sou Maçom? Como sou Maçom?
Para que é que isso serve? Como pode a Maçonaria contribuír para um
mundo melhor, mais humanista, mais solidário, mais fraterno, mais
equilibrado, enfim, será que pode? É óbvio que não vou dar resposta a
estas inquietações, porque à medida que vou crescendo, são maiores as
dúvidas do que as certezas, o que, provavelmente, tornará irrelevante
para o futuro da humanidade esta minha intervenção. Gostaria, contudo,
de partilhar convosco estas mesmas inquietações, se isso me for
permitido.
Afirmar hoje que sou Maçon, pode sugerir várias
significações e não menos enquadramentos. Nenhum deles será, contudo,
suficientemente explícito para designar porque sou Maçon. Há uma certa
tendência para se caír neste tipo de falta de clareza quando não se sabe
bem o que dizer. No entanto, eu lancei o meu bote à deriva, e tenciono
colher-lhe a trajectória. Volto ao início: Porque sou Maçom? A primeira
resposta pertinente que me surge é: porque sim! (Não chega, não é
suficiente). Sou Maçon porque acredito, sigo, milito nas Constituições
de Anderson! Sou Maçon, porque fui iniciado numa Loja Regular - Justa e
Perfeita. (Aproximo-me da razão)... Sou Maçom, porque os meus Irmãos me
reconhecem como tal... é isso: há um grupo de gente, que eu não escolhi -
uns, já lá estavam; outros, chegaram depois - que me reconhecem no seu
seio, me acompanham, me ajudam, contam comigo, conto com eles... Há um
grupo de gente, que eu reconheço de modo diferenciado, e que me
reconhece de modo diferenciado. De quê? De todo o resto que
indiferenciadamente me não reconhece...
Existe
um grupo de pessoas, espalhado pelo universo, capaz de me acolher, de
me reconhecer, de me identificar, apenas porque sou Maçom. Num acervo
infinito de gente, há gente que me reconhece. Há gente que me responde a
um telefonema, porque me apresento na qualidade de Maçom. Há gente que
eu nunca teria conhecido, mas que conheço, apenas porque sou Maçon.
Haverá, eventualmente, gente que, se eu não fosse Maçon, nunca me teria
conhecido ou reconhecido, na imensa mole de gente que, não sendo Maçon,
também é gente. No entanto, a Maçonaria não se esgota nisto, mas é
também isto. Isto é, não é bem isto, mas é sobretudo isto. Não vos venho
falar de rituais, de ritos, de liturgias, mas, sobretudo, acima de toda
e qualquer suspeita, daquilo que, para além do acto iniciático que me
tornou Maçom; de todos os outros actos iniciáticos que me permitiram
progredir na via da Maçonaria; de tudo aquilo que, apesar de tudo, me
obriga e abriga como Maçom; origina o facto de vos estar a dizer que sou
Maçom. E se o sou, é por que me sinto como tal e, sobretudo, porque os
meus Irmãos me reconhecem como tal. O que é que eu espero de um mundo
que me reconhece como Maçom? O que é que o mundo espera de mim, enquanto
Maçom? Que tenho eu para dar, ou para receber, por esse facto? Um
abrigo? Um qualquer espaço recôndito de reconhecimento mútuo? Medalhas,
condecorações, não, seguramente! Um olhar imaculado, virginal, sobre o
acidente a que se chama quotidiano? Volto à origem: sou Maçom, porque os
meus Irmãos me reconhecem como tal. Reconheço os meus Irmãos porque há
um segredo que nos liga. O segredo, pelo simples facto de o ser, não é
desvelável nem é desvendável!
Este mundo está dominado por
aqueles que, de entre nós, são mais actuantes: não necessariamente mais
consequentes, não necessariamente mais honestos nos seus desígnios.
Antes, até, pelo contrário. Este mundo que nós conhecemos ou pensamos
conhecer, no âmago da nossa pueril inteligência, tem muito pouco a ver
com a nossa / minha qualidade de Maçom. Existe-se para consumir e não
para consumar. É triste, mas é verdade, aquilo que nos liga, na inércia
do sistema de estarmos vivos, é a ânsia daquilo que nos separa.
Juntamo-nos, corporativamente, para encontrar abrigos para o que nos
separa. Afirmamos a diferença mais do que a semelhança. Esgaravatamos o
inferno para provar que somos deuses. Que Olimpo este, tão cheio de
cepticismo, de hipocrisia, de auto afirmação. Que céu este, tão cheio de
núvens, de cavaleiros sem cavalo, de Quixotes sem moínhos... Sou Maçom
porque sim, e disse!!!!
Ou não disse, porque a segurança das
minhas afirmações não acompanha a segurança dos meus actos. Ser Maçom,
significa, se calhar, aquele imaginário que eu persigo, mas não alcanço.
Ou pior, perseguir aquele imaginário que serve de escudo à minha
impotência. Ou, se calhar, ser aquilo que o sendo, não o é... na
perspectiva em que eu coloco a vontade, mas que a possibilidade
recusa... Ser Maçom é, porventura, tentar sê-lo... ou dizer-se que se
é... E a P2?, e o negocismo? E os lóbis inconfessáveis? E essas
pequeninas e grandes ânsias de poderes... e, eventualmente, de poderes
consumados? Porque ser Maçom, hoje, quando se pode ser tantas outras
coisas? Por quê ser aquilo que se deseja ser, mas que se receia não ser
suficientemente? Mas, ..., ser Maçom, ... , é também, e, sobretudo,
escolher, no mundo labiríntico que nos enforma, uma forma de traçar
caminhos, eventualmente tão labirínticos como aqueles que traçam a
necessidade de os percorrer...
Ser
Maçom, é também ser lúcido, ou seja, admitir a Luz que nos ilumina
quando nos consideramos sábios. Melhor, a Luz que, sem o sabermos,
despeja em nós o calor que nos energiza. Não há nada de místico na Luz
que nos ilumina. A leitura esotérica da nossa realidade reflecte apenas a
lucidez pragmática da nossa realidade esotérica. A Liberdade viaja com o
sonho, à velocidade da Luz. A Igualdade é o mito apócrifo de todo o
imaginário humano. A Fraternidade reside no extremo do mutualismo, no
fundo do túnel da esperança que mantém vivas as nossas paixões, os
nossos sonhos, a puerilidade das nossas emoções mais sinceras...Encontar
um Irmão, é recuperar uma peça perdida da nossa identidade, é recorrer
ao regaço de uma mãe eterna, protectora, coadjuvante dos nossos receios,
porque são também estes que nos ligam, é a dúvida que nos mantém
unidos. A certeza é apanágio de quem não sabe. Se nascer é sofrer,
renascer é reencontrar um curso para o sofrimento, ou seja, reciclar o
sofrimento em felicidade. Eu, sou Maçom, porque sim! Admito, contudo,
que os meus Irmãos me reconheçam como tal....
Outra questão que
se pode colocar, neste âmbito de reflexões, é: o que deve o Mundo à
Maçonaria? O que deve a Maçonaria ao Mundo? É tradicional o sentimento
do Maçom que, ao fim de três ou quatro anos de frequência da sua Loja,
se interroga: o que é que ando aqui a fazer? Como e de que modo poderá
ser a Maçonaria, ou o meu trabalho como Maçom, útil à Sociedade e ao
Mundo? E criam-se guildas e associações e sociedades de pressão, e
intenções que se transformam em negócios e negócios que se vêm a
confundir com todos os outros negócios do mundo profano. Passem-se os
juízos de valor... A vontade de exercer um qualquer protagonismo,
consentâneo com os valores intrínsecos da Maçonaria, é uma vontade
legítima. A operatividade da Maçonaria é notória em todas as formações,
transformações e convusões do mundo ocidental, nos últimos séculos. A
História da modernidade atesta-o. Mas a questão de fundo é esta: será
mais urgente e consequente a acção no mundo exterior, profano, ou a
acção, determinada e constante sobre cada um de nós, pedra obviamente
constitutiva do edifício universal? Por outras palavras, admitindo que a
cada Maçom assiste uma participação no mundo profano - familiar,
profissional, etc. - não será mais profícuo o trabalho sobre a pedra
bruta que cada um de nós constitui, na sua essência, do que essa
urgência, por vezes histérica e mesmo histriónica de agir por agir, de
mostrar serviço, quantas vezes mau, na sociedade civil? Esta, meus
senhores, é uma das questões, porventura, mais polémicas e complexas que
assistem a um Maçom. Tenho-me deparado e confrontado com ela, ao longo
de mais de uma década, na minha qualidade de Maçom.
É
usual ouvir-se dizer, em Portugal, que foi a Maçonaria que instituíu o
regime republicano no país. Será, contudo, a Maçonaria, uma instituição
republicana? É claro que qualquer pessoa que conheça minimamente a
história dos povos e das civilizações sabe responder que não. Muitos
aristocratas e monárquicos notáveis preencheram e preenchem o painel das
personalidades diferenciadas no quadro da Maçonaria portuguesa, e da
Maçonaria Universal, como é natural. Claro que também é natural que,
tratando-se o corpo maçónico de um acervo de homens livres e de bons
costumes, no seu seio se tenham notabilizado alguns dos mais ilustres
republicanos da história dos povos em geral, e da república portuguesa,
em particular. O mesmo poderá ser referido, no respeitante à dicotomia
laicismo-religiosidade, por exemplo. Será o laicismo um apanágio da
Maçonaria? Estou convencido que não. É claro que a Maçonaria acredita
numa sociedade laica, em que os valores da cidadania e do humanismo se
sobreponham aos interesses e aos valores de uma qualquer comunidade
religiosa. Mas, em toda a história da Maçonaria, mesmo na história
contemporânia, encontramos cidadãos laicos e cidadãos membros do clero,
cidadãos agnósticos e cidadãos de grande profundidade religiosa, a
partilhar os trabalhos de Loja, unidos na mesma cadeia de união. Isto
significa que os valores que nos ligam constituem elos de metal mais
sólido e forte do que os que eventualmente nos separam. Os credos
religiosos, as militâncias políticas, as idiossincrasias culturais que
definem a individualidade de cada Maçom, subjazem aos elevados valores
humanos e sociais que os religam nessa sólida cadeia de união
universal.
E esta reflexão leva-nos a uma última
questão: o facto de haver, dentro do mesmo país, diversas Obediências
maçónicas, por vezes com adjectivações diferentes, significa que existem
sectarismos ou rivalidades maçónicas? A História, neste aspecto, também
é clara: a Maçonaria é uma Ordem Universal. Os homens, por vezes,
apesar de partilharem os mesmos valores e objectivos, encontram-se
conjunturalmente divididos. É humana a diferença de opinião e a
afirmação da diferença. Contudo, no universo da Maçonaria, são mais
fortes os valores de religação do que os de rotura. A Ordem Maçónica
Universal tende para o reconhecimento da diferença e da especificidade
cultural de cada Obediência. O mesmo se passou, na Idade Média, com as
diversas Ordens Religiosas: a força religadora era mais forte do que a
diferenciadora. Ouve-se, por vezes, falar, nos salões do mundo profano,
como em certos meios maçónicos, de uma divisão entre uma Maçonaria dita
regular e uma outra dita liberal, ou adogmática. A primeira, mais
conservadora e enfeudada aos valores da religiosidade, ou da crença numa
verdade revelada, liderada pela Inglaterra e pela anglofilia, e a
segunda, mais progressista, eventualmente ateia e aberta à mudança,
liderada pela França e pela francofilia. É certo que existem obediências
que se reclamam da exclusividade dos princípios (landmarks) maçónicos, e
outras, que procuram uma maior adequação às mutações sociais do nosso
século. Aquilo que as separa é o que separa dois irmãos desavindos, mas
que continuam a reconhecer-se como irmãos nos momentos chave da sua
existência e convivência. É a perspectiva do universalismo maçónico que
todos os Maçons perseguem e invocam, quando procedem, no encerramento
dos seus trabalhos de Loja, à Cadeia de União.
Volto
a afirmar, no mais íntimo da minha convicção: a Maçonaria não é, não
será, nem foi nunca regular, liberal, adogmática, operativa,
especulativa, republicana, laica, monárquica, anarquista, socialista,
mista, feminina, ecológica, verde ou libertária. Ela foi, e será sempre,
Universal, atenta às mutações culturais, motor dos ideais vertentes
sobre os valores que persegue, em cada momento histórico, em função de
metas que vai atingindo e transpondo, fora de toda a estanqueidade, de
todo o enquistamento que o mundo profano determina. Se hoje, o dogma é,
ainda, e por não ter ainda sido ultrapassado: Liberdade, Igualdade,
Fraternidade; Sabedoria, Força, Beleza; amanhã será aquilo que aqueles
que viermos a iniciar vierem a perseguir, se conseguirmos que estes
valores se tornem, entretanto, redundantes, no sentido da Perfeição do
Homem e da Sociedade que o abriga e obriga. Ao julgarmos perseguir a
essência dos valores iniciáticos da Nobre e Augusta Ordem Maçónica, que
se fundam, entre outros, em conceitos como os de Fraternidade e de
Tolerância, deixamos de parte os epítetos e as adjectivações sectárias, e
fixamo-nos nos valores que nos ligam, aprofundando as razões do acervo
simbólico iniciático que nos enforma, sob pena de deixarmos que a ânsia
cega de modernidade contribua para o esvaziamento dos valores
estruturais da Tradição.
Liberdade, Igualdade, Fraternidade;
Paz, Amor, Humanismo; etc., para além de sons agradáveis ao ouvido, são
valores insofismáveis e inquestionáveis para um Maçon; serão,
porventura, dogmas irrecusáveis. Penso que ainda é cedo para se falar de
uma Maçonaria Quântica, ou mesmo Cosmogenética, que tome por premissas a
dinâmica não-linear, a teoria dos fractais ou a da auto-similaridade.
No equilíbrio entre a exacerbação da ordem e a exacerbação do caos,
situa-se, penso, a Maçonaria Universal, ou seja, nesse sempre humano
equilíbrio entre a arritmia do cérebro e o pulsar seguro do coração,
nessa sempre necessária fecundação da emoção pela razão, e vice-versa,
que reciprocamente se estimulam em espiritualidade e acção criativa. As
diferenças de rito, a maior ou menor abertura às idiossincrasias do
mundo profano, a mais rápida ou mais lenta adequação à mudança em termos
de superestrutura, não constituirão entrave, mas antes incentivo ao
apertar dos laços entre todos os homens livres e de bons costumes que,
pela iniciação ritual e simbólica, se tornaram Maçons. E este objectivo
dirige-se a toda a Humanidade.
Regresso ao tema inicial desta
comunicação e pergunto-me: porque sou Maçom? A resposta é inevitável:
por todas estas razões e por outras, eventualmente inconfessáveis ou
inexprimíveis, mas a razão primeira e, certamente a mais segura é PORQUE
SIM!
Disse
Maio de 1998
Luis Conceição
M.·. M.·. (R.·. L.·. Convergência, n.º 501, a Oriente de Lisboa, G.·. O.·.. L.·..)
Prancha apresentada no Ciclo de Belas Artes em Madrid, na qualidade de
Grande Chanceler do Grande Oriente Lusitano, Maio de 1998.